EXCERTOS

Sumário | Prefácio | Páginas do livro

EXCERTO DA INTRODUÇÃO
EXCERTO DO CAPÍTULO 2: PROTAGONISTA - OBJETIVO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA
EXCERTO DO CAPÍTULO 7: PREPARAÇÃO
PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 8: IRONIA DRAMÁTICA
SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 8: IRONIA DRAMÁTICA
EXCERTO DO CAPÍTULO 9: COMÉDIA
EXCERTO DO CAPÍTULO 10: DESENVOLVIMENTO
EXCERTO DO CAPÍTULO 13: DIÁLOGO
EXCERTO DO LÉXICO

 


EXCERTO DA INTRODUÇÃO

"Conte-me uma história"

Durante a Segunda Guerra Mundial, no campo de concentração de Stutthof, uma mulher de nome Flora dirigia um teatro de pão. Com parte de sua magra ração, ela modelava pequenas figuras. À noite, escondidas no banheiro, ela e outras prisioneiras animavam seus atores de miolo de pão, diante de uma platéia de famintos e condenados. Foi assim até o fim. Essa história foi relatada ao dramaturgo Joshua Sobol por uma sobrevivente do holocausto, Irena Lusky, na época em que Sobol realizava pesquisas sobre o teatro do gueto de Velenious para sua peça Gueto. Vale como demonstração de que, mesmo nas circunstâncias mais terríveis, o ser humano necessita de que lhe contem histórias.

Necessidade, aliás, nada supérflua. Podemos viver sem praticar esporte, sem viajar, sem ter filhos... mas não podemos viver sem histórias. O relato, seja ele endereçado a nós mesmos ou aos outros, reportado ou inventado, literário ou dramático, realista ou simbólico (haja vista as parábolas bíblicas ou os contos de fada), é tão vital para nossa psique quanto o oxigênio para nosso organismo. Em A psicanálise dos contos de fada, Bruno Bettelheim [17] demonstra o quanto o conto é útil à criança. Não só porque a distrai e alimenta seu imaginário, mas igualmente, e sobretudo, porque a ajuda a resolver seus conflitos, lhe dá esperança no futuro e lhe permite amadurecer sem se tornar psicótica. Em resumo, porque ele a ajuda a aprender - e a apreender - a vida.

Uma forma de narrativa fascinante

Tornado adulto, o ser humano ainda experimenta essa necessidade de histórias. Em primeiro lugar, é claro, elas servem para distrair, no sentido etimológico do termo, ou seja, "extrair do todo", fazer esquecer o cotidiano. Fazem, porém, muito mais do que isso. Afinal, uma queima de fogos de artifício, uma dose de uísque, um jogo de futebol, um programa de tevê, uma visita à Torre de Belém também distraem; não conseguem, no entanto, nos permitir o acesso ao pensamento e às emoções do outro. E isso não é banal. Um ser humano conhece bem seu próprio pensamento, seus desejos e suas emoções parasitas. Mas conhece mal sua imagem. Com relação aos outros, ocorre o contrário: conhecemos bem suas imagens e suas emoções, mas não seus pensamentos ou desejos. A dramaturgia possui a faculdade de reunir o todo, de fazer confluírem imagem, pensamento, desejo e emoção, permitindo ao espectador de se fundir parcialmente com o outro.

Muito interessante a ressaltar é o fator de esse outro ser ao mesmo tempo um personagem de ficção - em breve o denominaremos o protagonista - e o autor que se esconde por trás dele, como Flaubert se escondia em Emma Bovary (Madame Bovary). Em dramaturgia, não faltam exemplos: Sófocles velava-se no velho Édipo (Édipo em Colono), Molière em Arnolfo (Escola de mulheres), Hitchcock em Manny Balestrero (Henry Fonda em O falso culpado), Hergé em Tintim, os Dupondt e o capitão Haddock reunidos (Tintim), etc. Entre Charlot e Chaplin, a relação é ainda mais patente. A dramaturgia cria dupla ligação entre autor e espectador, o que é próprio de todas as artes, e entre o personagem e o espectador, processo específico e que chamaremos de " identificação ". Freud [63], Nietzsche [127] e tantos outros afirmam que esse fenômeno de identificação constitui um dos prazeres fundamentais do drama, que estaria ligado a seu efeito terapêutico. Na Índia, em vez de lhes receitar medicamentos, alguns médicos contam a seus pacientes uma história em sintonia com os sintomas apresentados.

Podemos também estabelecer paralelo entre dramaturgia e o universo dos sonhos, com o qual ela entretém singulares semelhanças. O ser humano é igualmente ator e espectador de seus próprios sonhos, ainda que nem sempre os sonhos contem uma história. Ora, essa é precisamente a posição do espectador, quando ele se identifica com o protagonista de uma obra dramática. E o sonho, como sabemos, também é alimento vital para nossa psique.

As origens do drama

A dramaturgia está na essência de todo ser humano. Os historiadores do teatro costumam localizar sua origem no rito religioso. A imitação das ações humanas (ou divinas) aconteceu inicialmente no espaço do sagrado, desde as civilizações ditas primitivas, fazendo dos sacerdotes seus primeiros atores. Quanto aos temas, abordavam as atividades humanas fundamentais (nascimento, morte, caça, etc.) e os elementos naturais (tempestade, sol, germinação, etc.). Aos poucos, a representação se enriquece e, sobretudo, passa do sagrado ao profano, mesmo que guarde algo de sua natureza religiosa (no sentido etimológico do termo). No Ocidente, esse fenômeno ocorreu em duas ocasiões: no século VI a.C. na Grécia, e no final da Idade Média na Europa.

Poderíamos, no entanto, propor outra origem para o drama, de natureza distinta e, quem sabe, mais profunda. O bebê quando aprende a andar ou a falar é movido por uma força instintiva: a imitação. Suas atitudes representam as ações humanas de seus pais e irmãos. Um pouco mais tarde, além de não parar de imitar seus precursores, a criança faz mais: cria um universo mais ou menos fictício, em que também interpreta todos os papéis. Fabulação e duplicação fazem parte de sua vida cotidiana. Concretamente, situando-nos nessa zona simbólica intermediária entre realidade e fantasia, a dramaturgia assemelha-se ao jogo do " faz de conta " das crianças. Ousaríamos mesmo afirmar que se trata de seu equivalente adulto. Resumindo, o primeiro ator - espectador - autor dramático não seria o feiticeiro pigmeu ou o sacerdote grego, mas a criança que cada um de nós foi. Essa é, em parte, a razão pela qual ela estará frequentemente no centro das reflexões levantadas neste livro. Cabe sublinhar que a criança de que falamos é, antes de mais nada, espectador; em seguida, autor (ou adaptador, para ser mais exato) e, enfim, ator.

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EXCERTO DO CAPÍTULO 2: PROTAGONISTA-OBJETIVO

Quatro condições essenciais

Estabelecer um objetivo único para o protagonista não seria, em princípio, suficiente para garantir a eficácia de uma construção narrativa. Seria igualmente fundamental:

1- que esse objetivo fosse conhecido, ou ao menos percebido, pelo espectador, sem muita demora, no começo da narrativa. Enquanto o espectador não for capaz de pressentir, mais ou menos conscientemente, o desejo/necessidade do protagonista, a ação não terá sido instalada e ele se manterá alheio à história, sensação suportável apenas a curto prazo. Essa primeira condição impõe ao autor a necessidade de que o objetivo do protagonista já esteja claramente definido em seu espírito. Ainda que se opte por navegar em certo nível de mistério, não há como construir uma narrativa rigorosa sem saber para onde se encaminha a ação;

2- que o objetivo estivesse ancorado em alguma motivação. O protagonista deve ser capaz de compartilhar seu desejo com o espectador. Se esse último não for capaz de compreender - sem necessariamente aprovar - o objetivo do protagonista, nada estará em jogo em seu espírito e não haverá suspense;

3- que, por meio da ação, se revelasse particularmente difícil ao protagonista atingir seu objetivo. Isso, contudo, sem configurar uma missão impossível. Uma das grandes dificuldades do ofício do autor dramático é a dosagem dos obstáculos. Retornaremos a esse aspecto nos próximos capítulos;

4- que o protagonista fosse movido por intenso e irresistível desejo de atingir seu objetivo. É fundamental evitar a impressão de que o protagonista possa "deixar pra lá" a qualquer momento ou ainda que, para ele, "tanto faz". Quanto mais o protagonista quer, mais o espectador se envolve com sua história. Pensemos em Antígona (Antígona), prestes a arriscar a própria vida para oferecer uma sepultura digna a seu irmão; em Galileu (A vida de Galileu), que afronta a Terra inteira (e até a peste), tamanho é seu desejo de saber e de provar sua ciência; em Baptiste (Jean-Louis Barrault), em Os rapazes da geral, que, atirado pela janela por Avril (Fabien Loris), retorna pela porta - em geral, os insistentes costumam fazer o contrário: os fazemos sair pela porta, e eles voltam pela janela; em Hildy (Rosalind Russell), em O grande escândalo, que, para obter uma manchete, não hesita em correr de saia justa e salto alto, atrás de uma testemunha, e de fazê-la parar com um movimento de rugby; em Ethan (John Wayne), em A desaparecida (1956), que percorre o velho oeste americano durante 15 anos para reencontrar sua sobrinha; em Zé do Burro, em O pagador de promessas, que enfrenta o clero, a polícia, a imprensa, os fanáticos e os comerciantes para carregar uma cruz dentro de uma igreja; em McMurphy (Jack Nicholson), em Voando sobre um ninho de cucos, cuja vontade de assistir a um jogo de beisebol é tamanha, a ponto de inventar uma partida imaginária diante de uma tela escura; em Ahmad (Babak Ahmadpoor), em Onde é a casa do amigo?, que pede insistentemente à sua mãe (Iran Outari) autorização para sair até que ela ceda; em Krimo (Osman Elkharraz), em A esquiva, que dá tudo o que possui (patins, tênis, videogame, etc.) a Rachid (Rachid Hami), em troca do papel de Arlequim, para ficar próximo da jovem por quem está apaixonado; em Gabrielle (Eva Longoria), no primeiro episódio de Donas de casa desesperadas, que corta grama à meia-noite, de vestido longo, a fim de impedir seu marido de descobrir que ela transa com o jardineiro.

Certas obras dramáticas podem frustrar o espectador, porque seus protagonistas não se esforçam ao máximo para atingir seus objetivos. Em O caloiro da máfia, por exemplo, o protagonista (Matthew Broderick) se deixa enrolar como um pato - entre outras coisas, o forçam a casar-se - e, embora não esteja nada contente, protesta ligeiramente, mas pouco faz para se livrar.

Como esperar que o espectador torça pelo protagonista, se ele próprio não investe no que deseja? Em outras palavras: se essa ação, principal, não importa muito para os personagens, por que importaria para o espectador? É a razão do fracasso de Os 4 espiões. Hitchcock [78] explica: "Penso saber por que o filme não foi bem sucedido. Em um filme de aventuras, o personagem principal deve ter uma meta. Isso é vital para a evolução da história e para a participação do público, que deve apoiar o personagem e, eu diria, quase ajudá-lo a atingir seu objetivo. Em Os 4 espiões, o herói tem uma tarefa a realizar (matar alguém) mas essa tarefa lhe causa horror, e ele evita cumpri-la de todas as maneiras."

Na verdade, poderíamos arriscar dizer que o protagonista de Os 4 espiões tem dois objetivos contraditórios: o primeiro, matar alguém, imposto por seus superiores; o segundo, escapar dessa tarefa. Infelizmente para a eficácia do filme, falta tensão ao primeiro objetivo. E o segundo não é tratado. Os 4 espiões faz parte dessa categoria de obras nas quais uma missão é confiada a um personagem (em geral um soldado, um policial, um espião ou um detetive). Para que esse tipo de obra funcione, é necessário que o futuro protagonista seja motivado pela missão em si e que se aproprie do objetivo que lhe é atribuído.

Concluindo, um protagonista deve ser, sobretudo, ativo. Eventualmente, reativo. Jamais passivo. E seu objetivo deve dar a impressão de se tornar, a cada cena e cada vez mais, uma idéia fixa, uma missão, uma necessidade irrefutável ou uma fatalidade.

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PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO

O príncipe encantado de um casal fusional

Outro personagem discutível e coroado de sucesso é Jack (Leonardo DiCaprio) em Titanic. Em que pesem qualidades narrativas e espetaculares inegáveis, creio que o filme lhe deve boa parte de sua popularidade. Pois Jack é o que se chama de Salvador com S maiúsculo. Vejamos: no espaço de poucos dias, salva Rose (Kate Winslet) do suicídio, do tédio, de sua frigidez, do casamento, da aristocracia e, uma segunda vez, da morte! E mais, faz tudo isso com o sacrifício da própria vida. Muita esperteza da parte de James Cameron. Ao criar o personagem de Super-Salvador, de grandeza quase igual à de Cristo, o roteirista de Titanic nos propõe o príncipe encantado que muitos homens gostariam de ser e muitas mulheres sonham encontrar. Infelizmente, Senhoras e Senhores, no mundo real, os príncipes encantados não existem. Titanic propõe uma visão do amor destinada a crianças de quatro anos: uma moça sofre e, em vez de ir à luta e encontrar nela mesma seu salvador (com s minúsculo), depara-se com o belo Leonardo, com seu espírito livre, seu senso de sacrifício e sua filosofia de velho monge budista. Em resumo, as mulheres que sonham com um Jack em suas vidas, em minha opinião, correm o risco, de se decepcionar terrivelmente ao ver o filme.

Titanic, em sua primeira fase, conta uma história de amor na fase de fusão. Essa é a fase em que tudo corre bem, em que 1+1=1, em que o outro só tem qualidades, em que se está apaixonado, em que as emoções são fortes e deliciosas. É de lamentar que o cinema, bem como o teatro e a literatura, aliás, se interessem menos pela segunda fase de uma relação sentimental, e menos ainda pela terceira, onde 1+1=3 (o eu, o outro e o casal). A maioria das histórias de amor descreve o momento imediatamente anterior ou posterior ao encontro. O resto, como em todos os contos de fada, implica que o casal viverá unido e feliz até o final de seus dias. Sabemos todos que na vida real raramente isso acontece. "A coisa mais reconfortante que se pode mostrar aos filhos" - observa Françoise Dolto [48] - "é uma vida de casal que resiste ao tempo." E será isso o que há de mais reconfortante para ser mostrado aos espectadores?

É possível encontrar várias explicações para essa grande lacuna. Primeiramente, o fato de, numa relação amorosa, a fase da "lua-de-mel" ser a mais forte em emoções e espetáculo. Em segundo lugar, o fato de muitos artistas se projetarem no que escrevem e estarem mais habituados a apaixonar-se do que a alimentar um romance de longa duração. Entre as exceções, ou seja, as obra que se interessam pela vida de um casal após a fase de fusão, pode-se citar Viagem em Itália ou a sétima temporada de Donas de casa desesperadas. Ou um curta metragem ironicamente intitulado Âges ingrats ("idades ingratas"), em que um casal de velhos (Macha Méril, Philippe Nahon) é posto à prova no momento de festejar seus 30 anos de casamento. Essas exceções demonstram que uma relação conjugal que resiste ao tempo não é necessariamente uma vida isenta de conflitos. Poder-se-ia também citar, é claro, narrativas nas quais a fase 2 do casal se eterniza como um longo dia sem pão: O gato, Mariage, Quem tem medo de Virgínia Woolf?, Cenas da vida conjugal, Uma mulher sob influência, Depois do amor ou Quando o amor acaba. Esses, no entanto, são casos um pouco diferentes e... desesperadores, diante dos quais só se tem uma vontade: voltar a cair nos braços de Jack!

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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 4: CARACTERIZAÇÃO

D. CARACTERIZAÇÕES NOTÁVEIS

Se existe área em que o gosto pessoal do espectador é levado em consideração, essa é a caracterização. Justamente por isso, a escolha dos personagens notáveis citados abaixo foi feita segundo meu gosto, minha subjetividade e não deve ser considerada pista de interesses. Cada leitor comporá uma lista de acordo com seu gosto.

O que torna um personagem instigante?

Os personagens que salvam o planeta com seu pênis e uma faca me aborrecem profundamente. Prefiro Haddock a Tintim, Obélix a Astérix, Falstaff ao príncipe Henry (Henrique IV), Cyrano de Bergerac a Christian, o agente 86 (Don Adams em Olho vivo) ao agente 007 (James Bond). Se não fosse a falta de jeito de Clark Kent, Superman seria, para meu gosto, insuportável. O mesmo aconteceria com Homem-Aranha se não fosse a timidez de Peter Parker. Foi por simpatizar com Perrin-Pignon (Jacques Brel, Pierre Richard ou Jacques Villeret) que Milan (Lino Ventura), Campana (Gérard Depardieu) ou Brochant (Thierry Lhermitte) se tornaram mais humanos. Muitos filmes escritos por Francis Veber, aliás (Fuja enquanto e tempo, Que o diabo seja surdo, Os compadres, Os fugitivos, O jantar de palermas), ainda que metaforicamente, contam como um forte se humaniza domesticando a parte fraca que existe nele, seu lado Pignon.

Ao longo de minha carreira tive ocasião de observar alguns elementos constantes nos personagens que mais me tocaram. Segue-se uma pequena lista deles:

- Antígona (Antígona)
- Édipo (Édipo rei)
- Falstaff (Henrique IV)
- Otelo (Otelo)
- Lear (Rei Lear)
- Arnolfo (Escola de mulheres)
- Nora (Casa de bonecas)
- Cyrano (Cyrano de Bergerac)
- Charlot (Charles Chaplin)
- o Bucha e Estica (Oliver Hardy e Stan Laurel)
- Mãe Coragem (Mãe Coragem e seus filhos)
- Galileu (A vida de Galileu)
- George Bailey (James Stewart) em Do céu caiu uma estrela
- Cody Jarrett (James Cagney) em Fúria sanguinária
- Will Kane (Gary Cooper) em O comboio apitou três vezes
- Anne Sullivan em The miracle worker
- C.C. Baxter (Jack Lemmon) em O apartamento
- Thomas More (A man for all seasons)
- Felix (Tony Randall) em The odd couple
- César (Yves Montand) em César et Rosalie
- Dersou Ouzala (Maksim Munzuk) em Dersu Uzala, a águia da estepe
- McMurphy (Jack Nicholson) em Voando sobre um ninho de cucos
- Franck Poupart (Patrick Dewaere) em Série negra
- Pupkin (Robert De Niro) em O rei da comédia
- Charlotte (Charlotte Gainsbourg) em A descarada
- Ahmad (Babak Ahmadpoor ) em Onde é a casa do amigo?
- Alice (Mia Farrow) em Alice
- Phil Connors (Bill Murray) em O feitiço do tempo
- Peter Duffley (Jim Broadbent) em The Peter principle
- Mulan (Mulan)
- Erin Brockovich (Julia Roberts) em Erin Brockovich
- Carla (Emmanuelle Devos) em Nos meus lábios
- Michael Scofield (Wentworth Miller) em a primeira temporada de Prison break, minhas observações são as seguintes.

1. Eles não são perfeitos, longe disso. Não são super-heróis cheios de músculos e matéria cinzenta. Têm falhas, contradições, complexos e são deficientes no mais amplo sentido da palavra. Édipo é cego e impetuoso (além do mais, amaldiçoado). Nora é ingênua. Cyrano é disforme e covarde no amor. Mãe Coragem é venal. Felix Unger, maníaco. César, ciumento. Charlotte, invejosa. Peter, incompetente ao extremo. Charlot é pobre. Ahmad é uma criança no mundo de adultos, Mulan é mulher na China medieval. Jarrett, Pupkin e McMurphy estão na fronteira da psicose; tal como Franck Poupart, um belo exemplo de garoto de quatro anos num corpo de adulto.

2. Eles não são brancos nem pretos. Isso não quer dizer que sejam destituídos de contradições em todos os domínios; são, ao mesmo tempo, covardes e corajosos, otimistas e pessimistas, avarentos e pródigos. Podem ser obstinados em cada domínio. Simplesmente, se têm defeitos, têm também qualidades. E vice-versa. Antígona, Édipo, Felix, George Bailey e Will Kane são íntegros. Cyrano é fisicamente corajoso. César é cheio de charme. Mulan é astuciosa. Falstaff adora a vida, o Bucha e Estica têm a candura das crianças.

3. Mais especificamente, eles, por vezes, têm uma qualidade notável, uma pequenina qualidade que poderá mostrar-se útil. Charlot num minuto é capaz de se botar na pele de padre, pugilista, funâmbulo (ver adiante). Cyrano escreve poemas maravilhosos. George Bailey tem amigos. Dersou sabe como sobreviver na tundra. Carla sabe ler lábios. Michael Scofield é terrivelmente malicioso. Às vezes, basta uma única dessas facetas para nos fazer rir. O Bucha e Estica ou Peter Duffley seriam certamente menos atraentes se não nos divertissem. Às vezes, também, se não fosse por sua perseverança, eles, em si, não teriam muita coisa para mostrar - o que vai ao encontro da característica 5. Mas que qualidade fantástica é a perseverança, tanto na vida como na dramaturgia!

4. Eles vivem do conflito. Sobre isso, já falamos muito. O personagem que passa a vida em brancas nuvens é um personagem tedioso na ficção. Lear foi privado de seu reino, de seus vassalos, de sua filhas, de sua razão e, por fim, da vida. Otelo é cego pelo ciúme. Coragem perde seus filhos. Antígona, Will Kane e Thomas More estão bem sós frente à adversidade. McMurphy é um rosário de frustrações. O Bucha e Estica, um acúmulo de fracassos. Alice vê-se tragada pela vida; Phil Connors, imobilizado num dia que dura indefinidamente. O conflito pode tomar a forma de culpa. É o que faz de George (Montgomery Clift) um personagem instigante em Um lugar ao sol por oposição a Chris (Jonathan Rhys Meyers) em Match point. Os dois fazem de tudo para ascender socialmente, mas a consciência moral do segundo é a de um réptil.

5. Eles se debatem, lutam, mas não esperam ser salvos, como Rose (Kate Winslet) em Titanic. Agarram o destino com as mãos. Cada um com sua maneira de lutar. Édipo leva seu questionamento às últimas consequências. Pupkin sequestra um ator famoso (Jerry Lewis) para ele próprio fazer-se de ator. Arnolphe faz de tudo para separar Agnès de Horace. Galileu resiste, persevera, às vezes contorna obstáculos. Idem para Thomas More que usa todas as astúcias do direito para evitar a decapitação. Erin Brockovich move céus e terras para dar cabo de Golias. McMurphy inventa um jogo de baseball imaginário. Carla, uma secretária ingênua, insociável, covarde e sexualmente frustrada, recusa-se a baixar a cabeça. Chega mesmo a dar prova de firmeza de caráter em certas circunstâncias. Começa por escolher um marginal, Paul (Vincent Cassel), para assessorá-la, como se seu inconsciente, sabendo o que é bom para ela, tivesse percebido ser Paul o tipo certo para sacudir-lhe a vida. Quando um de seus colegas a engana, ela pede que Paul roube um dossiê e o pressiona: "Você me deve algo". Em suma, Carla, como todos os personagens aqui mencionados, sem certas particularidades, seria uma perfeita heroína de melodrama.

6. Às vezes, representam papéis tipo "Sim, mas...". É, eu tenho vontade de mudar. De atingir meu objetivo, mas tenho medo. Medo do vazio, daquilo que não conheço, medo de largar minhas muletas, de não conseguir chegar aonde pretendo. Como diz Hamlet em seu famoso monólogo (Hamlet), nós nada fazemos e suportamos nossos males por medo de enfrentar aqueles que não conhecemos. Sem chegar ao extremo de Hamlet, que está sempre postergando seu julgamento, sentimos todos esses personagens, num ou noutro instante, a pique de a tudo renunciar. De todo o repertório teatral, o caso mais fenomenal de todos os "Sim, mas..." é o de Édipo. Quando Tirésias lhe dá a solução, ele poderia escolher atingir seu objetivo desde o início da peça. Sim, mas Édipo tem medo da verdade. Também Charlot, quando reencontra finalmente sua querida florista, prefere desaparecer. Will Kane está a um triz de montar em um cavalo e fugir. C.C. Baxter vai embebedar-se num bar quando descobre que a mulher que ama já está comprometida. Phil Connors tenta suicidar-se para escapar da repetição interminável de um dia em sua vida. Michael Scofield tem um momento de terrível desânimo (Prison break, 1.17). "Você precisa ter fé", seu irmão lhe diz (Dominic Purcell).

Essa sexta característica, no entanto, deve ser manipulada com cuidado. Como vimos, o espectador identifica-se com o protagonista que mostra firmeza na perseguição de seus objetivos. Quando Cyrano hesita, depois de ter conseguido seduzir Roxane (final do quarto ato), muitos passam a achá-lo mais enfadonho do que atraente. Um pouco como sucede com Stevens (Anthony Hopkins) em Os despojos do dia, quando ele não consegue confessar o amor que sente.

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PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA

Um nódulo dramático particular

A quase-totalidade das peças de teatro possui estrutura simples: primeiro, segundo e terceiro ato, com um incidente desencadeador no primeiro e um clímax no final do segundo, o que resulta neste diagrama:

Esse diagrama simples e lógico é tão ancorado no inconsciente dos autores e dos espectadores que o encontramos em todo tipo de obra, inclusive em numerosos documentários (cf. Roger e eu, páginas 510-511) ou em narrativas tão atomizadas quanto 21 gramas. Um pai de família, acompanhado por suas duas filhas, é atropelado e morre. Eis o incidente desencadeador. O filme segue a trajetória de sua viúva (Naomi Watts), a do motorista do carro (Benicio Del Toro) e do homem (Sean Penn) que recebeu em transplante o coração da vítima. A grande originalidade do filme está em propor os múltiplos elementos dessas três intrigas na mais completa desordem, convidando o espectador a recompor mentalmente os pedaços do quebra-cabeça. A narrativa, todavia, não é tão desconstruída quanto parece. O essencial do incidente desencadeador é mostrado aos 25 minutos de filme (que no todo tem pouco menos de duas horas), e o essencial do clímax, cinco minutos antes do final. Em resumo, 21 gramas respeita esse diagrama.

A estrutura modificada

As peças (teatrais) ditas "bem feitas" do século XIX introduziram pouco a pouco uma estrutura um pouco diferente, como que um enriquecimento dessa estrutura simples, amplamente desenvolvida pelo cinema - o que não implica dizer que todos os filmes a utilizam. Essa modificação consiste em introduzir um golpe de surpresa no começo do terceiro ato, de tal maneira que ele relança a ação. Como se o autor dissesse ao público: "Parem ! Não partam ! Sim, é verdade que acabo de concluir a ação, mas a resposta dramática apresentada talvez não seja a boa. Alguma coisa ainda subsiste que pode ameaçar a posição atingida pelo protagonista, que pode impulsioná-lo a retomar seu objetivo (atenção: o mesmo objetivo do começo da história)". Ela demanda consequentemente uma segunda resposta dramática à questão colocada no primeiro ato.

Nessa nova estrutura, turbinada, o terceiro ato pode ser mais longo, já que ele não é mais desprovido de ação ou de propósito dramático. Se uma divisão grosso modo da duração dos atos numa estrutura simples corresponde, hipoteticamente, a 20-75-5 páginas (ou minutos), a dessa versão modificada teria 20-75-15, por exemplo (N.B. esses números são valores relativos, e não dogmas). E esse terceiro ato modificada é construído de acordo com o princípio orientador do todo, ou seja, ele possui seu próprio incidente desencadeador (o golpe de surpresa em questão), seu próprio clímax, trazendo uma segunda resposta à questão dramática já respondida e seu próprio terceiro ato. O que resulta no seguinte:

E.T. (E.T., o extra-terrestre) morre. Acabou. O segundo ato se encerra. De repente, percebemos que ainda existe um sopro de vida dentro dele. Seu objetivo (voltar para sua casa) é reativado. Ele tenta novamente, com a ajuda de Elliot (Henry Thomas). E, dessa vez, consegue.

Sra. Thorward está viva, descobriram seu paradeiro (Janela indiscreta). As suspeitas de Jeff (James Stewart) eram, consequentemente, infundadas. Ele abandona então seu objetivo, e o percebemos decepcionado pelo fato de uma vizinha não ter sido assassinada na janela. Golpe de surpresa: o cachorrinho dos vizinhos de cima foi morto, e Thorward (Raymond Burr) é o único a não dar a menor atenção às lamentações de sua dona. O casal Jeff e Lisa (Grace Kelly) retoma seu objetivo (provar a culpabilidade de Thorward) até que a briga entre Jeff e Thorward intervenha, constituindo o clímax do terceiro ato.

No último dia do prazo fixado para o dia 15, Tintim e capitão Haddock ainda não acharam o tesouro (O tesouro de Rackham o Terrível). Eles desistem e retornam para a Europa. Final do segundo ato. Golpe de surpresa: o castelo de Moulinsart está a venda, o que recoloca Tintim na pista do tesouro. E, dessa vez, ele o encontra.

Cabe observar que o segundo incidente desencadeador, ao contrário daquele intervindo no primeiro ato, não deve ser fortuito, sob o risco de se tornar um deus ou, no melhor dos casos, um diabolus ex machina. Ele deve necessariamente decorrer das ações que o precedem, mas sem deixar de nos surpreender.

Duas respostas dramáticas opostas

Na maioria dos casos, a segunda resposta dramática é contrária à primeira. Por exemplo, em muitos filmes hollywoodianos, o protagonista fracassa no final do segundo ato, para melhor triunfar no final do terceiro (cf. o caso de E.T., o extra-terrestre, Janela indiscreta e O tesouro de Rackham o Terrível, acima, além das construções de Astérix e o caldeirão e O apartamento, adiante).

Às vezes a resposta dramática é a mesma (positiva em geral), mas sua obtenção exige dois clímax, em vez de um, como que para valorizá-la. É o caso de Alien, o 8º passageiro. Pensamos que o monstro está morto. Surpresa: ele ainda está vivo e pronto para o contra-ataque.

Os exemplos em que a resposta dramática é primeiramente positiva para, após o golpe de surpresa, se tornar negativa são bastante excepcionais. A ameaça é um dos raros a ter a coragem de decepcionar dessa maneira o espectador. Os rapazes da geral funciona de maneira semelhante. No final do segundo ato, Baptiste (Jean-Louis Barrault) atingiu seu objetivo, conseguindo, enfim, conquistar Garance (Arletty), e eles dormem juntos. Golpe de surpresa: Nathalie (Maria Casarès) aparece e faz um escândalo. Garance decide então desaparecer. Baptista tenta em vão reencontrá-la e o terceiro ato se conclui em meio à multidão que toma de assalto um boulevard num desfile carnavalesco.

Como já descrito, em Janela indiscreta, bem como, aliás, em Intriga internacional (cf. Capítulo 15), pode ocorrer de o clímax do terceiro ato ser mais intenso que o do segundo. Nem sempre, porém, essa é uma boa idéia, pois isso pode levar o espectador a perder o trem do primeiro clímax. Apesar disso, não deixa de ser uma maneira de respeitar o crescendo do conjunto da obra e dele participar.

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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 5: ESTRUTURA

CASABLANCA (1942)
Foi muito divulgada a idéia de que Casablanca não possui roteiro. A fantasia de que um grande sucesso, artístico e comercial, pode ser feito sem o ponto de partida fundamental, que é a construção narrativa, conforta aqueles que as regras importunam (rebeldes e preguiçosos, entre outros). A realidade me parece mais trivial: Casablanca deve seu sucesso a fatores afetivos e espetaculares (o ambiente, o exotismo, a oposição ao nazismo e, obviamente, ao par Bergman-Bogart), tanto quanto a uma estrutura clássica sólida, "disfarçada" (por um objetivo singular e numerosos personagens), mas solidamente estabelecida. Não é de estranhar, aliás, que o filme seja a adaptação de uma peça de teatro.
Incidente desencadeador: inexistente.
Protagonista: Rick (Humphrey Bogart). Casablanca é, entre outras coisas, o retrato de um homem: desde o começo, Rick é apresentado como um tipo indiferente de todos os pontos de vista, que se recusa a se comprometer. Ele é categórico: "Não me arrisco por ninguém e por nada". Quando, mais tarde, ele se expõe pelo casal de búlgaros, ele o faz sem vaidade e evita toda demonstração de reconhecimento.
Objetivo: manter-se neutro e invulnerável emocional, política e comercialmente. É um objetivo singular, e é isso que, em parte, torna Casablanca tão difícil de analisar. Manter-se neutro não é um objetivo que conduza à ação, mas à reação. O título original da peça, aliás, é Everybody comes to Rick's. Em outros termos, são os obstáculos - e o conflito - que vêm a Rick, e não o inverso. Isso dito, uma vez dado o empurrão inicial, ele se tornará mais ativo. E seu objetivo se transforma em resistir à tentação de se comprometer, de se engajar. N.B. ainda que raro no repertório, podemos encontrar o mesmo tipo de objetivo reativo em Édipo em Colono, no qual o velho Édipo se recusa a tomar partido ou se sentir responsável pela batalha que opõe seus dois filhos. Ao contrário de Rick, porém, Édipo resiste à pressão até o final, antes de morrer serenamente.
Passagem primeiro ato - segundo ato: a chegada de Ilsa (Ingrid Bergman) não pode ser considerada um incidente desencadeador, já que não é esse o nódulo dramático que impulsiona Rick a estabelecer um objetivo. Em contrapartida, até sua chegada, podemos considerar que Rick vive em equilíbrio estável. Ele dribla sem se perturbar os pequenos obstáculos que se lhe apresentam, e que mais servem para caracterizá-lo. Quando Ilsa chega, a pressão torna-se muito mais forte. Então, se o primeiro ato termina quando compreendemos o objetivo de Rick, a ação só deslancha quando Ilsa entra em cena.
Obstáculos externos: numerosos são os obstáculos que minam a resistência de Rick. As ameaças e chantagens, o risco de fechamento de seu café, mas o mais belo obstáculo é, de longe, Ilsa.
Obstáculo interno: o amor de Rick por Ilsa. Esse amor começa por emocionar Rick e termina por obrigá-lo a tomar partido.
Clímax: Rick e Ilsa se beijam. E ele aceita, enfim, ajudar Victor Laszlo (Paul Henreid), mas quer guardar Ilsa junto a si.
Resposta dramática: negativa.
Terceiro ato: é bastante longo (16 minutos), e isso é normal. Rick aceitou ajudar Laszlo, o que se torna um objetivo local. Assim sendo, o terceiro ato é composto de: o aprisionamento de Laszlo, a negociação de sua liberação com Renault (Claude Rains), a venda do café a Ferrari (Sydney Greenstreet) e o clímax do terceiro ato: morte de Strasser (Conrad Veidt) e decolagem do avião.

AS VIDAS DOS OUTROS (2006)
Incidente desencadeador
: o capitão Wiesler (Ulrich Mühe), o coronel Grubitz (Ulrich Tukur) e o ministro Hempf (Thomas Thieme) estão assistindo à representação da última peça de Georg Dreyman (Sebastien Koch). Wiesler e Hempf comentam que Dreyman deve ser vigiado.
Protagonista: Georg Dreyman. De fato, Wiesler é o personagem que se transforma e o autor dedica a ele um certo número de cenas. Mas o personagem sob perigo é claramente Dreyman. O começo do filme não deixa dúvida a esse respeito. Tememos por Dreyman e nos identificamos rapidamente com ele. Se observarmos de mais perto o filme como um todo, o personagem que mais vive conflito é Christa (Martina Gedeck). Mas ela é tratada como um personagem secundário. Estruturalmente, é Dreyman o protagonista.
Objetivo: não ser descoberto. Num primeiro momento, este objetivo é ligado ao que chamaremos em breve de "questão irônica" (cf. página 324). De um modo geral, Dreyman não tem objetivo consciente em toda a primeira metade, porém, como sabemos que ele é espionado pela Stasi, lhe atribuímos um. A partir do momento que ele começa a conspirar, este objetivo se torna consciente, ainda que ele ignore que está sendo grampeado.
Subobjetivo: verificar que seu apartamento está seguro, esconder sua segunda máquina de escrever, esconder sua atividade de Christa. Na primeira metade do segundo ato, Dreyman descobre que Christa tem um caso forçado com Hempf. Ele procura então fazê-la romper. Este objetivo local não é um subobjetivo do objetivo geral. Em contrapartida, é indiretamente um obstáculo. Pois só aumenta a motivação de Hempf pra perseguir Dreyman.
Passagem primeiro ato - segundo ato: Grubitz decide grampear a linha de Dreyman.
Obstáculos internos: na primeira metade, Dreyman é um "bom socialista". Ele apenas critica o regime por impedir Albert Jerska (Volkmar Kleinert), seu amigo diretor de teatro, de trabalhar. Na segunda metade, Dreyman emancipa-se e corre riscos de ser preso.
Obstáculos externos: a barbárie, o vício e a loucura paranóica do regime da Alemanha de Leste. O filme oferece um testemunho forte, de tom quase documental. A propósito disso, ele começa com uma aula de interrogatório de dar calafrios.
Clímax mediano: Albert Jerska se suicida. Este nódulo dramático leva Dreyman a tomar partido e a escrever um artigo denunciando o regime. Não é por acaso se a queda de Wiesler acontece mais ou menos ao mesmo tempo no filme.
Clímax: a segunda revista sem resultado do apartamento que conclui-se com o suicídio de Christa.
Fim do segundo ato: Grubitz declara que a operação "Lazlo" - isto é, o grampea-mento da linha de Dreyman - está encerrada.
Resposta dramática: positiva.
Terceiro ato: duração de 15 minutos. Ele serve principalmente para resolver uma das ironias dramáticas principais do filme: Dreyman descobre que ele estava sendo grampeado e entende o papel que Wiesler representou. Mesmo que este terceiro ato contenha um incidente desencadeador (a resolução em questão) e uma pequena ação - Dreyman investiga sobre Wiesler -, não se trata aqui de uma estrutura modificada. Primeiro, porque alguns anos se passam entre o fim do segundo ato e o começo desta ação. Segundo, porque a ação é nova. Não é a ação principal que é relançada por um golpe de surpresa.

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EXCERTO DO CAPÍTULO 7: PREPARAÇÃO

Promessa é dívida

Apesar da obviedade da cena a fazer, por vezes um autor faz promessas que acaba por não cumprir.

Em O silêncio dos inocentes, Clarice (Jodie Foster) faz treinamento para ingressar no FBI e deve investigar os crimes de um perigoso psicopata. Para compreender a mentalidade desse último, seu superior (Scott Glenn) lhe sugere visitar outro criminoso, Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), ex-psiquiatra encarcerado em uma prisão de segurança máxima. Lecter tem a reputação de ser uma manipulador diabólico, e Clarice é alertada: "Não lhe revele nada a seu respeito e, sobretudo, não o deixe penetrar sua cabeça". Nas entrelinhas entendemos: "Caso contrário, isso lhe custará caro". Pouco tempo depois, ficamos sabendo que Lecter conseguiu levar seu companheiro de cela à morte. Nos dizemos que, realmente, para Clarice, todo o cuidado é pouco. E assim, quando desde sua primeira conversa, Lecter lhe pede informações sobre sua vida pessoal, nos inquietamos e esperamos o pior. Mas não! Clarice acaba por lhe fazer confidências, mas isso fica sem consequências, bem como o anúncio feito, sem pagamento.

Se ficamos decepcionados é porque perdemos uma bela ocasião para um conflito suplementar. No caso de O silêncio dos inocentes, não se trata apenas disso. Os roteiristas não se preocuparam em criar uma ligação entre as confidências de Clarice e a evasão de Lecter - que uma tenha propiciado a outra, por exemplo -, o que teria dado mais rigor e coesão ao filme, além de demonstrar que, na tentativa de prender um psicopata, a estagiária do FBI teria deixado escapar outro, ainda mais psicopata e perigoso. Enfim, o alcance do objetivo - abordar a impotência da sociedade americana diante de seus loucos - teria sido ainda mais contundente.

Em O exterminador implacável 2: O dia do julgamento, John Connor (Edward Furlong), sua mãe (Linda Hamilton) e o gentil robô (Arnold Schwarzenegger) são perseguidos por um maldoso robô transformista, o T-1000 (Robert Patrick). Ao término de uma das cenas de perseguição, o T-1000 deixa um pedaço de metal (sua carne) no teto do carro dos protagonistas. John Connor o pega com as mãos nuas e o joga na calçada. T-1000 chega, e o pedaço de metal começa a fundir-se ao corpo de seu proprietário. Ora, fora plantada - aliás, de maneira insistente e desnecessária - a informação de que o T-1000 possui a capacidade de se travestir em qualquer ser humano que ele tenha tido a ocasião de tocar. Esperamos todos que ele se transforme então em… John Connor e instale a confusão entre os co-protagonistas. Nada disso acontece, e o robô prefere aparecer na pele da mãe, no momento em que o conflito se resolve. Ao argumento de que o robô não teria nenhum interesse em se fazer passar por John Connor (já que o que ele quer é apenas matá-lo), a resposta fica no ar: por que então anunciá-lo?

No meio de Minority report, relatório minoritário, o médico (Peter Stormare) que acaba de transplantar olhos em John (Tom Cruise) recomenda: "Espere 12 horas antes de retirar as bandagens, senão você ficará cego". Até um despertador é acionado. O problema: John é procurado por seus ex-colegas e eles estão por perto. Scanners ambulantes são encarregados de vistoriar todas as identidades oculares no prédio em que John se esconde, enquanto o despertador indica "- 6 horas". Para não ser traído pelo calor de seu corpo, John mergulha numa banheira com água gelada. Após várias peripécias, ele é obrigado a retirar as bandagens do olho esquerda para o controle dos scanners. Supomos que ele vá ficar cego, mas não; e não se toca mais no assunto.

Nota de rodapé. Em uma versão do roteiro disponível na Internet, o anúncio é claramente explorado: o olho esquerdo de John se torna leitoso em meio ao controle de identidade, e ele passa o resto do filme com um tapa-olho. Por uma razão desconhecida, Spielberg não reteve a idéia na filmagem, sem se ter preocupado em retirar também o anúncio. Esse não é um caso isolado. Sabemos que um roteiro pode ser parcialmente reescrito na mesa de montagem. Certas cenas são às vezes abandonadas porque não funcionam como o esperado. É um caso entre outros, que justificaria a presença do roteirista, já que, quando uma cena a fazer acaba nas sobras, o montador ou diretor não tem obrigatoriamente a presença de espírito de retirar seu anúncio. O mesmo erro pode ser cometido nas adaptações para o teatro que cortam no comprimento das cenas ou as invertem (cf. a versão curta de Hamlet, dirigida por Kenneth Branagh, página 179). Samson Raphaelson [141] conta que Ernest Lubitsch lhe teria chamado no set, em plena filmagem, para verificar se ele poderia mudar uma linha de diálogo. "Imaginem esse homem, mais apto para escrever um diálogo do que qualquer outro diretor (…) Ele tinha a inteligência de supor que a mudança que tinha imaginado poderia eventualmente ter incidência sobre algum outro ponto da narrativa, sem que ele pudesse se dar conta, criando uma incoerência com um personagem ou uma situação. E por isso reclamou minha memória do roteiro e meu senso de caracterização (…) Por uma linha de diálogo!" Na França, vemos muitos filmes, telefilmes e seriados cujos diretores possuem ego mais frágil que Lubitsch e, ainda assim, se recusam a consultar seus roteiristas, nem durante a filmagem nem durante a montagem, e se vêem às voltas com buracos e incoerências na sala de montagem.

Em Le chant de la baleine abandonnée, Yves Lebeau mostra repetidamente um fuzil que, contrariamente ao preceito de Tchekhov apresentado como epígrafe no início deste capítulo, não serve para nada. O desperdício é ainda pior porque um final lógico para a peça (cf. o tema, no Capítulo 1) teria sido o assassinato da mãe pelos três filhos (com o famoso fuzil, é claro!). Eles, que se queriam ver livres, enviando-a para uma pensionato de idosos, acabariam com um cadáver nas mãos!

Em Chouchou, Stanislas (Alain Chabat) declara a Chouchou (Gad Elmaleh) que quer apresentá-la à seus pais. Chouchou fica muito lisonjeada, mas isto a assusta. Feito isto, Stanislas - que já passou dos 40 anos - leva uma bronca de sua mãe por telefone. A preocupação de Chouchou só aumenta. Os autores nós prometem uma bela cena de conflito. Alguns minutos depois, a apresentação de Chouchou se realiza mas a encenação planejada é completamente abortada. Os pais são adoráveis. Chouchou espalha sua incultura sem que isto leve a consequências. Ele consegue até passar por um psicanalista. Enfim, tudo vai bem. Estamos decepcionados.

O primeiro ato de O dia da saia anuncia um assunto original e polêmico: uma professora de colégio surtada (Isabelle Adjani) sequestra seus alunos e lhes ensina Molière sob a ameaça de uma arma. Este é, inclusive, a situação presente no cartaz do filme. Infelizmente, este cativante assunto só é tratado por um minuto e meio no filme, o tempo de uma cena. Uma boa parte do segundo ato é dedicada ao banal desenrolamento policial e logístico do sequestro e a uma subintriga sentimental sem interesse dedicada a um dos policiais (Denis Podalydès).
Que os autores dessas obras não tenham conseguido explorar melhor seus anúncios é uma coisa. Não se trata de dizer que é fácil, longe disso! Mas que um diretor, voluntariamente, deixe uma preparação sem pagamento e o espectador a ver navios, é outra. Diante da impossibilidade de pagar uma promessa, o melhor ainda é não prometer e retirar as tochas da cesta do malabarista.

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PRIMEIRO EXCERTO DO CAPÍTULO 8:
IRONIA DRAMÁTICA

NB: para a definição de ironia dramática cf. o extracto de léxico abaixo.

Participação do público

Como demonstram todos esses exemplos, a ironia dramática é uma ferramenta extraordinária de participação do público; ela coloca o espectador em situação muito privilegiada em relação à vítima, situação que, infelizmente, não lhe é oferecida com frequência, quando se trata de sua vida. Fora da ficção, quase sempre avançamos pelo mundo às cegas e, apesar de tentar planificar nossa vida, criando marcas de identificação e objetivos, nem sempre conseguimos - como, aliás, muitos personagens da dramaturgia - fazer as coisas acontecerem como o previsto. Alguns evocarão o destino. O acaso também tem seu papel. Nosso inconsciente (a parte, portanto, invisível do iceberg) é que está, muitas vezes, na origem desses inesperados.

Além disso, somos bombardeados por inúmeras mentiras. "Vivemos todos dentro de uma grande mentira", afirma Viktor (Al Pacino) em Simone, filme escrito por Andrew Niccol, autor de vários roteiros (Simone, Gattaca, A vida em directo) abordando o tema da grande mentira pública. Isso dito, as mentiras não vêm todas de políticos, publicitários ou dirigentes de mídias. A mentira começa em nossa infância e dentro do círculo familiar. Como explica Claude Steiner [169], a mentira pode ser expressa por palavras, mas igualmente por atos. Por exemplo, quando um pai faz o contrário do que ensina ao filho, está mentindo. Quando negamos o que pensamos para não nos comprometer, estamos mentindo. Ora, a mentira atinge a capacidade de consciência do ser humano e, em fortes doses, pode levar à loucura.

Podemos agora facilmente compreender a enorme satisfação que experimenta o espectador quando, diante de seus olhos excepcionalmente lúcidos, personagens cegos se agitam, vítimas de mentiras cujo alcance só ele pode compreender, e caem em armadilhas que só ele é capaz de evitar. Que prazer quando o autor convida o espectador a tornar-se seu cúmplice, promovendo-o à superioridade em relação a certos personagens e oferecendo-lhe as chaves dos segredos da intriga. O interesse que a dramaturgia suscita há 25 séculos tem, certamente, algo a ver com esse prazer.

Saber consciente e saber reprimido

O intenso interesse do espectador pela ironia dramática pode, porém, ter causa diferente. Em alguns dos exemplos citados, fica evidente que a ignorância da vítima é consciente. O que dizer, entretanto, sobre o nível do inconsciente? Se Nora (Casa de bonecas) não se dá conta de ser maltratada pelo marido, talvez seja por, no fundo, isso lhe interessar e ela preferir, por enquanto, não ter de agir a esse respeito. Se Norma Desmond (Gloria Swanson em Crepúsculo dos deuses) ignora o fato de não mais ser uma diva, é provavelmente porque sabê-lo lhe seria doloroso demais. Quanto a Édipo (Édipo rei), certamente reprime verdades muito insuportáveis para ele.

O fenômeno é, sem dúvida, idêntico no mundo concreto. A fronteira entre o que sabemos conscientemente e o que intuímos ou sentimos é, com frequência, imperceptível. Em alguns dos exemplos citados, a palavra "ignorar" pode ser forte demais. A vítima da ironia dramática, em muitos casos, não ignora, prefere antes ignorar ou se recusa a acreditar - pode, aliás, suspeitar daquilo que nós, espectadores, já sabemos. Talvez por isso, cônjuges traídos, tanto na vida como nas peças de boulevard, sejam sempre os últimos "a saber".

Em consequência disso, explorar uma ironia dramática consiste, muitas vezes, em colocar em cena toda a energia que o inconsciente humano gasta tentando evitar que o consciente admita algumas verdades por demais cruéis. Assim sendo, a ironia dramática daria conta, com mais precisão e profundidade, da psicologia dos personagens. Ainda aqui, é fácil imaginar o prazer do espectador ao perceber nos outros o que ele vivencia cotidianamente, ainda que sem se dar conta.

Além de Crepúsculo dos deuses, Casa de bonecas e Édipo rei, outras três obras ilustram com perfeição essa oposição entre saber consciente e saber reprimido: Morte de um caixeiro viajante - do qual o primeiro título de trabalho era algo como "Por dentro de sua cabeça" -, Mentira e A festa (1998). Na peça de Arthur Miller, Willy Loman recusa a verdade porque ela é penosa demais, mas sentimos que ele se aproxima da lucidez, dando até a impressão de tê-la compreendido. É o que faz da peça obra tão rica, profunda e fascinante. No filme dirigido por Hitchcock, sabemos que Charlie (Joseph Cotten) é assassino procurado pela polícia; sua família o ignora. E, no entanto, a sobrinha (Teresa Wright) suspeita de algo e, aos poucos, sua intuição se transforma em certeza. Todo o segundo ato descreve o processo dessa revelação. Finalmente, em A festa (1998), pensamos que Christian (Ulrich Thomsen) diz a verdade quando acusa seu pai de abuso sexual. Atenção: nenhuma prova formal nos é oferecida, além da força dramática que nos impulsiona inconscientemente a identificar-nos com o personagem em conflito. Ora, a maioria dos convidados dessa festa de família não acredita em Christian: alguns nada sabem; outros reprimem o que inconscientemente já sabem; outros ainda (o pai e a mãe) mentem. Todos, porém, de uma maneira ou de outra, preferem não encarar a intolerável verdade.

 

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SEGUNDO EXCERTO DO CAPÍTULO 8:
IRONIA DRAMÁTICA

NB: para a definição de ironia dramática cf. o extracto de léxico abaixo.

A IRONIA DRAMÁTICA DIFUSA

Imaginemos agora uma cena bem simples, quase banal, em que o personagem empresta seu carro ao vizinho que promete tomar muito cuidado. Imediatamente, nós, espectadores, compreendemos que ele não tomará cuidado e acabará por destruir o carro do amigo. Não sabemos exatamente o que acontecerá com ele, é verdade; mas, exatamente por estarmos no cinema, no teatro ou na história em quadrinhos, percebemos algo, do nosso lugar de espectador, que os personagens não podem perceber. Isso é ironia dramática. E se aquele que toma o carro emprestado é o Bucha e Estica, Jerry Lewis, inspetor Clouseau, Gaston Lagaffe ou detetive Palmer, o princípio permanecerá o mesmo, só se intensificando a ironia dramática.

Imaginemos uma segunda cena: quatro "trintões" resolvem fazer um passeio de caiaque no rio. Ao colocar o barco na água, imaginam que, salvo por alguns espirros de água, a aventura será tranquila. É assim que começa Fim de semana alucinante. Adivinhamos que o final de semana não será tão tranquilo assim, ou seja, de uma certa maneira, "sabemos" algo que os personagens ignoram. Isso também é ironia dramática.

Passemos agora a dois mendigos esperando alguém na beira de uma estrada. A noite chega com a notícia de que aquele que eles esperam não chegará. No dia seguinte, os dois mendigos começam novamente a aguardar. Curiosamente, tudo acontece exatamente como na véspera, e aos poucos compreendemos algo que os dois mendigos parecem não compreender: que aquele que eles esperam nunca virá (cf. À espera de Godot).

Uma adolescente muito problemática, cujos pais são descritos como severos e puritanos. Internada em hospital psiquiátrico, a menina é diagnosticada como esquizofrênica. Médicos e pais se dividem quanto à origem do mal: um vírus ou o diabo. Ainda que David Mercer (roteirista de Vida em família) não se pronuncie claramente sobre o assunto, adivinhamos: são os pais da adolescente os responsáveis do seu estado.

Um comerciante veneziano - Antônio - pede três mil ducados emprestados a um agiota - Shylock - que o detesta e que propõe e seguinte negócio: se, no dia estabelecido, Antônio não pagar sua dívida, Shylock poderá se ressarcir extraindo de Antônio uma libra de sua própria carne. Antônio aceita as condições do empréstimo, certo de poder reembolsá-lo na data prevista - muito mais otimista, portanto, do que o espectador ao final do primeiro ato de O mercador de Veneza.

Por fim, imaginemos uma estação balneária aterrorizada por um tubarão assassino. Os pescadores da região partem à caça e retornam com um tubarão-tigre de três metros amarrado pelo rabo. Todos na cidade ficam satisfeitos. Nós, espectadores, entretanto, desconfiamos de que não se trata do tubarão assassino. E o que sabemos com certeza é que o filme Tubarão começou há apenas 40 minutos. A conclusão é simples.

O distanciamento do espectador

Poderíamos multiplicar os exemplos infinitamente. O princípio é sempre idêntico: seja qual for a situação, seja qual for a cena, o espectador pressente o pior - os cínicos e pessimistas dirão que "esperam" o pior - e se prepara para o que houver de mais conflituoso, interpretando informações que o protagonista (local ou geral) não é capaz de interpretar. Não se trata da ironia dramática apresentada até agora, pois o espectador não recebe informação suplementar, em relação ao personagem (à exceção, talvez, de se saber dentro de um filme, coisa que os personagens, em geral, ignoram). Seria uma forma mais sutil de ironia dramática, mais indefinida, que denominaremos "difusa".

Essa ironia dramática difusa é própria da posição de espectador, que se sabe sentado em uma sala escura, para assistir às desventuras dos personagens que se agitam em cena ou na tela. Esse saber lhe confere um recuo, ampliando a capacidade de medir o alcance do que acontece com os personagens, de ser mais lúcido do que eles.

Estaríamos errados em pensar que a ironia dramática difusa também tem como origem a cultura do espectador. É verdade que, hoje, muitos espectadores são iniciados, eles conhecem os segredos, às vezes até de forma consciente. Mas o distanciamento do espectador em relação à uma narrativa é velho como o mundo. Na China, há 3.000 anos, uma criança que ouvia um conto de fadas já era mais clarividente que os personagens do conto em muitos níveis.

Todas as obras dramáticas, sem exceção, contêm ironia dramática difusa. As aplicações são as mais variadas, a começar pela ironia dramática propriamente dita, que não se encontrar em tantas obras por acaso. Ela própria não passa de uma forma de exploração da ironia dramática difusa.

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EXCERTO DO CAPÍTULO 9: COMÉDIA

Um tratamento menosprezado

Apesar de sua grandeza e utilidade, a comédia é ainda frequentemente alvo de desvalorização. É fato que, como pondera Gilles Lipovetsky [109] em A era do vazio, rir tornou-se imperativo social generalizado nas nações ocidentais. A irrisão, a paródia e a zombaria são onipresentes (muitas vezes acompanhadas de agressividade). Na televisão, tornou-se obsessão. Infelizmente, esse fenômeno resultou em uma tendência a vulgarizar a comédia, em vez de enobrecê-la. Apesar de Aristófanes, Molière, Chaplin, Lubitsch, A fera amansada ou O mercador de Veneza, ainda temos dificuldade em pensar que humor e arte possam formar bom par. "Rimos do começo ao fim, mas é só isso" é um dos mais clássicos (e mais trágicos) comentários da crítica. Ao passo que, quanto mais hermética uma obra séria, mais celebrada será, tratada de difícil, frágil ou ambiciosa, ainda que seja simplesmente um tiro pela culatra. É como esquecer algo fundamental: se é engraçado, é justo. A comédia e, a fortiori, a boa comédia é sempre um comentário pertinente e bem sucedido sobre a natureza humana. Uma comédia fracassada não tem desculpas - e, no entanto, um comédia também pode ser frágil. Oscars, césars e outras palmas de ouro raramente recompensam comédias. Gérard Depardieu foi nomeado por seu papel de palhaço branco (o palhaço sério) em Os compadres, mas não Pierre Richard, o palhaço augusto, que, no entanto, fez um trabalho formidável. Os atores ditos "cômicos" devem aguardar convite para atuar em um filme sério, antes de ser notados. Pensemos em Michel Galabru em O juiz e o assassino, Dan Aykroyd em Miss Daisy ou Coluche em Tchao Pantin. Ora, eles já se encontravam no auge de suas carreiras (e de suas artes) em Adorável gozador, O dueto da corda ou O inspetor Cabeçada. Para esses fenômenos, podemos propor algumas causas.

1. A comédia, como acabamos de ver, é um atentado à vaidade humana, trazendo-nos sempre de volta a nossa condição terrestre. Encena os entraves do inconsciente, enquanto a tragédia e o drama sério atribuem ao ser humano importância que ele talvez não tenha, mas que o envaidece, seja na condição de autor, crítico ou espectador.

2. Falta-nos distanciamento. O olhar que cada um de nós pousa sobre a própria existência é impregnado de lamentação, mais do que de ironia. Estamos prontos a considerar nossas vidas trágicas ou melodramáticas, eventualmente alegres - quando não há conflito -, mas raramente cômicas. E isso é tanto mais verdadeiro quanto mais próximo. Assim, obras que mostram situações terríveis temperadas com um pouco de humor e são acusadas de levianas: Inferno na Terra, por exemplo, cuja história se passa em um campo de prisioneiros alemão. O filme foi condenado injustamente e só redimido pelos depoimentos de ex-prisioneiros relatando que as piadas e farsas eram, sim, parte integrante do quotidiano dos campos, tentativa talvez de escapar à loucura.

3. A comédia é democrática - uma boa piada é capaz de reunir filósofo e camponês, jovem e velho, crente e ateu. É também anti-elitista e, como tal, frustra os que almejam o poder (seja ele intelectual, religioso ou político), principalmente os que gostam de estabelecer hierarquias. Com eles no topo, é claro. Além disso, por ser popular, é comercial, o que, para alguns, implica incompatibilidade com arte.

4. Ainda que a leveza da comédia deixe suspeitar facilidade em sua escritura, ela é, de todos os tratamentos, o que demanda mais competências. Só o resultado é leve, e não o (árduo) trabalho e o talento exigidos para a obtenção dessa leveza. A comédia é de delicada manipulação, exige técnica, e fazer rir é muito mais difícil do que atingir um tom sério. Em A crítica à Escola de mulheres, Molière coloca na boca de Dorante: "Penso que é muito mais fácil pendurar-se em grandes sentimentos, gritar contra a sorte e acusar o destino, insultar os deuses, do que penetrar decentemente o ridículo dos homens e colocar agradavelmente em cena os defeitos de todo mundo." E Mario Monicelli [119] vem confirmar: "Fazer um filme dramático me é muito mais fácil do que uma comédia". Bem como François Truffaut [183]: "Qualquer um que se tenha aproximada da escritura de roteiro sabe que a comédia é o gênero mais difícil de escrever, aquele que exige o máximo de trabalho, de talento e de humildade também."

Como corolário, existem muito mais dramas do que comédias, e ainda menos comédias bem-sucedidas do que dramas bem sucedidos. No cinema, a comédia é representada por um pequeno número de filmes, o que a faz ser assimilada como gênero, dividindo espaço com o faroeste, o policial ou a "comédia" musical (cf. páginas 80-81). Hawks [74] declara que a coisa mais difícil no mundo é por as mãos em uma história engraçada.

5. E se o palhaço fosse menosprezado tanto por ditadores, igrejas ou certos intelectuais pela simples razão de ser o ser humano mais lúcido em relação à vida, o mais inteligente, aquele que vê com clareza através do jogo das relações humanas e que joga luz sobre as falhas dos poderosos? O desprezo do qual o palhaço é alvo poderia então ser visto como medo ou ódio. Talvez fosse com o intuito de contrabalançar essa insuportável perspicácia que os príncipes escolhiam bufões feios ou deformados.

Contudo, cabe notar que, em relação à comédia, o desprezo é originado entre os formadores de opinião (críticos e profissionais), e não em meio ao público. Na França, os maiores sucessos do cinema se encontram tanto entre as comédias (Bem-vindo ao Norte, Que o diabo seja surdo, O trouxa, O jantar de palermas, A grande paródia, A guerra dos botões, Três homens e um berço, A vaca e o prisioneiro, Os visitantes, etc.) quanto nos filmes de aventura (Ben-Hur, Aconteceu no Oeste, O dia mais longo, A ponte do rio Kwai, etc.). Para não rir de sua vida, o espectador vai ao cinema ou ao teatro para rir da vida alheia. Cabe notar que as estatísticas americanas revelam algo diferente: nos Estados Unidos são os contos de fada modernos que encabeçam as listas de sucesso de bilheteria (Batman, Tubarão, E.T., o extra-terrestre, Guerra das estrelas, Harry Potter, Parque Jurássico, O senhor dos anéis, Titanic, etc.). Isso talvez denote uma diferença de mentalidade entre os dois povos. A respeito de cinema americano, Pauline Kael [92] escreve que "a indústria do cinema, por medo, sempre glorificou em seus filmes a idéia da coragem". Em Bowling for Columbine, Michael Moore desenvolve a idéia de que a cultura de massa americana é fundada sobre o medo. Alguns acrescentam que a celulite e as armas de fogo são um meio de exorcizá-lo. Existe, porém, uma terceira maneira: os contos de fadas modernos.

A história nada revela, mas eu apostaria que a mulher que animava seu teatro de pão no campo de extermínio de Stutthof (cf. página 11) se empenhava em fazer seus espectadores rirem.

Um tratamento terapêutico

Que a verdade seja dita: o riso é útil ao ser humano, sobre o qual tem efeito curativo. Em seu artigo O humor [61], Freud explica que a atitude humorística é uma recusa à dor, uma proclamação de invencibilidade do eu, uma afirmação do princípio do prazer, que tem o grande mérito de não nos permitir sair do terreno da saúde psíquica, ao contrário de outros meios de defesa contra a dor, como a neurose, a loucura, o êxtase ou o isolamento em si. Segundo Boris Cyrulnik [40], "o humor é um precioso fator de resiliência".

Diversas pesquisas colocam em evidência a ação do riso sobre a saúde mental e física, diminuição do estresse, aumento da longevidade, fortalecimento do sistema imunitário. Nos anos 60, num jornalista americano, Norman Cousins [38], foi diagnosticada uma forma grave de espondilite anquilosante. Um dia, após assistir a um filme que o fez rir, ele se deu conta do desaparecimento de sua dor, e decidiu, então, tratar-se pelo riso, assistindo a comédias, diariamente, lendo histórias engraçadas, se divertindo de todas as maneiras, e assim se curou. Essa história não é uma piada. Nos dias de hoje, muitos palhaços trabalham em hospitais com crianças doentes praticando a chamada geloterapia, a terapia pelo riso.

A comédia tem outra característica psicossomática: ela desconecta o hemisfério esquerdo e abaixa a guarda do receptor, contornando seu mental. O humor é como uma espécie de hipnose ericksoniana. Devido a essas capacidades ele é utilizado em psicoterapia ou no ensino budista, quando é muito útil para repassar a profundidade do conteúdo de sua mensagem. Um espectador que ri torna-se mais receptivo e compreende melhor o que é dito. Danis Tanovic [171] relata que, depois da acolhida de seu curta-metragem L'aube - que nada tem de realmente engraçado - ele compreendeu que deveria ter colocado humor em Terra de ninguém para que o público pudesse entender o que ele queria dizer sobre a guerra. Discurso equivalente é o de Hiner Saleem que, para divulgar a causa curda, optou pela comédia (Viva a noiva... e a libertação do Curdistão), em vez de fazer um filme engajado e grave como teriam desejados alguns grupos do Curdistão.

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EXCERTO DO CAPÍTULO 10: DESENVOLVIMENTO

Aristóteles e o repolho romanesco

A estrutura de uma obra narrativa é, de fato, o que o matemático francês Benoît Mandelbrot [111] chama de conjunto fractal. O princípio da teoria fractal, criada em 1974, é simples: formas que, a priori, podem parecer caóticas ou desordenadas são, na verdade, quase sempre fundadas sobre estrutura simples que se reproduz em múltiplas esferas - sendo infinito o número de esferas, ou seja, o padrão é o mesmo, olhando-se de perto ou à distância. O repolho romanesco oferece exemplo evidente e espetacular. O princípio, porém, se aplica a todos os tipos de conjunto, em todas as matérias: nuvens, neve, os brônquios, um raio, as costas da Bretanha, a distribuição das galáxias, algumas partituras de Bach, etc.

Vimos que o terceiro ato de uma obra dramática pode conter, como o todo do qual faz parte, seu próprio incidente desencadeador, que chamamos de golpe de surpresa, e seu próprio clímax. Dessa maneira, a estrutura simples que compreende três atos, um crescendo e um clímax existe em todos os níveis, desde uma frase de diálogo e até a totalidade da obra; é igualmente encontrada nas séries. Em Thorgal, a questão dramática do conjunto dos álbuns é: Thorgal e sua família conseguirão encontrar um lugar para viver em paz? Friends propõe um questão dramática que corre ao longo das 10 temporadas da série: Ross (David Schwimmer) e Rachel (Jennifer Aniston) terminarão juntos? Os 114 episódios do seriado The odd couple se apóiam em uma única questão dramática de conjunto: nosso casal divorciado (Jack Klugman, Tony Randall) conseguirão viver sob o mesmo teto sem se enlouquecerem mutuamente? Em Battlestar Galactica, o objetivo dos protagonistas é encontrar a Terra para viverem em paz. O seriado usa até a estrutura modificada sobre o conjunto de 73 episódios das quatro temporadas. O clímax geral acontece no 63º episódio (temporada 4, episódio 10). E a ação é relançada no 64º episódio com um clímax de terceiro ato nos dois últimos episódios.

Podemos até ultrapassar o limite da obra dramática (ou da série) e considerar que na vida inteira do protagonista - que a obra só relata em parte -, encontraremos a mesma estrutura. Podemos ainda passar a escala superior à da vida de um indivíduo, aquela de sua família, de sua cidade, de seu povo, etc., e chegar à mais importante escala hoje conhecida, que é a do universo. O Big Bang torna-se o incidente desencadeador de uma narrativa inacabada. Desconhecemos a resposta dramática e ainda menos o terceiro ato. Suspense... Isso dito, alguns religiosos não suportam essa insipiência e predizem um clímax: o apocalipse.

Dessa maneira, a vida de um ser humano é um conjunto tão fractal quanto a do personagem de ficção, tal como apresentado em uma obra dramática.

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EXCERTO DO CAPÍTULO 13: DIÁLOGO

Os diálogos-pagamentos

Aos auto-suficientes diálogos de citações, que dispensam outra função que a de pavonear seu sortilégio, eu prefiro os diálogos-pagamentos, que necessitam do contexto para que todo o seu sentido aflore. E isso talvez nos ajude a definir um bom diálogo. Para convencer-se, basta tomar o diálogo mais célebre do repertório, "Ser ou não ser", e tentar colocá-lo em diferentes contextos. Dependendo de quem o diga - Hamlet, no começo do célebre monólogo (Hamlet, III/1); um pedestre na rua; ou o ponto no teatro (Adolf Licho) em Ser ou não ser -, fica claro que ele não tem o mesmo alcance.

Outro exemplo, o bife de Shylock em O mercador de Veneza (III/1): "Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? (…) Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos?". De fato, esse diálogo se basta, dispensando injunções. Seria interessante, no entanto, notar que o contexto de O mercador de Veneza lhe oferece um sentido particular. Não se trata da réplica de um judeu diante de seus algozes - como estaríamos tentados a crer -, mas sim a de um judeu ressentido pela fuga de sua filha, e que tenta justificar seu desejo de revanche em relação a Antonio ("E se nos ofenderdes, não nos devemos vingar?"). Em outros termos, Shylock não está dizendo a Antonio: "Pare de me maltratar, sou humano como você", mas "Fui por você menosprezado, estou ferido como qualquer outro ser humano, e você vai me pagar caro pelo que fez". Lubitsch e seus co-roteiristas darão a essa tirada outro sentido mudando seu contexto em Ser ou não ser.

Exemplos de diálogos-pagamentos

Dessa maneira, certos diálogos, de absoluta falta de interesse fora de seu contexto, tornam-se particularmente saborosos quando assistimos ao que lhes precede ou envolve. Eis aqui alguns exemplos.

No final de O mercador de Veneza (V/1), Portia pede a Bassânio, seu marido, o precioso anel que ela lhe dera. Ora, sabemos que Bassânio o ofereceu ao advogado, em agradecimento a sua excepcional ajuda. Sabemos também que o tal advogado era a própria Portia disfarçada, sendo, portanto, ela quem possui o anel. Bassânio se afoga em mentiras para se desculpar. Portia termina por estender-lhe a jóia, dizendo: "Que seja mais zeloso".

Em La main passe (II/4), Francine é surpreendida por seu marido numa cama que não é a sua. Com seu ar mais ingênuo, ela diz: "Quê?... Quê?... O que você vai imaginar desta vez?".

Em Eu sou um evadido, James Allen (Paul Muni) é considerado criminoso pela polícia e pela justiça, ainda que seja totalmente inocente. Vítima das piores injustiças, preso várias vezes, acaba foragido. Ele tenta então rever a mulher que ama (Helen Vinson) para lhe dizer adeus. É o final do filme. Ela lhe pergunta como ele consegue sobreviver. "Eu roubo".

Em Ninotchka, Ninotchka (Greta Garbo), austera comissária soviética, vem a Paris em missão. Ela é recebida por três camaradas (Sig Ruman, Felix Bressart, Alexander Granach), já corrompidos pelo hedonismo capitalista parisiense. Os quatro se encontram na suíte real de um grande hotel e pedem cigarros ao serviço de quarto. Chegam então três vendedoras, jovens e animadas, vestidas como call-girls. Elas se imobilizam ao ver Ninotchka, enquanto os três camaradas abaixam a cabeça, envergonhados. Ninotchka diz: "Camaradas, vocês devem estar fumando muito."

Em O grande ditador, Hynkel (Charles Chaplin) acaba de dançar com a mulher de Napaloni (Grace Hayle), a quem, por delicadeza poderíamos dizer, falta graça. Ela a felicita: "Sua maneira de dançar, Madame, estava magnífica... excelente... muito boa... boa!".

Em Humulus, o mudo, Humulus pode pronunciar, por dia, uma única palavra, e decide economizá-las durante um mês para poder declarar seu amor a sua eleita. Chega enfim o dia D. Humulus faz sua declaração. A bela exibe então um aparelho auditivo e pede: "Pode repetir, por favor?".

Ao final de Quanto mais quente melhor, Jerry (Jack Lemmon) deseja realmente que Osgood (Joe Brown), que pensa que ele é uma mulher, pare de fazer-lhe a corte. Ele tenta todos os tipos de argumento, mas em vão. Desesperado, decide então confessar sua identidade sexual. Osgood, nada surpreso, lança então o lendário: "Ninguém é perfeito".

Ao final de Spartacus (1960), o exército de escravos comandado por Spartacus (Kirk Douglas) é vencido pelos soldados de Crassus (Laurence Olivier). Os sobreviventes são feitos prisioneiros. Lhes é prometido escapar à crucificação se entregarem o corpo, vivo ou morto, de seu líder. Spartacus vai render-se quando Antoninus (Tony Curtis) se levanta e grita: "Sou Spartacus!". Logo, outro prisioneiro faz a mesma coisa. E um terceiro. Rapidamente, todos os escravos gritam em coro "Sou Spartacus!".

Em Astérix legionário, Obélix é apresentado a Falbala, por quem está apaixonado. Ele estende a mão e diz: "Wkrstksft".

Ao final de Perigo na noite, o protagonista (Jon Finch) é surpreendido pelo inspetor Oxford (Alec McCowen) ao lado do cadáver de uma moça recém-estrangulada por uma gravata. Ele é, novamente, pego em situação comprometedora. De repente, os dois homens ouvem um ruído. Rusk (Barry Foster), o verdadeiro assassino, chega com uma mala. "M. Rusk, o senhor está sem gravata", observa o inspetor. Corta. Créditos de fim.

Em Fuja enquanto e tempo, Milan (Lino Ventura) é um assassino profissional e deve, da janela do seu hotel, executar um homem. O problema é seu vizinho da quarto, Pignon (Jacques Brel), um pobre-diabo que, graças a uma tentativa frustrada de suicídio, ameaça o sucesso de sua missão. O camareiro (Nino Castelnuovo) está prestes a chamar a polícia por causa dele. Milan chama o camareiro e, de forma totalmente glacial - graças sejam dadas ao Lino Ventura -, diz: "O que ele precisa... é de um pouco de calor humano. Deixa comigo".

No final de Viva papa!, Achile Talon é abraçado "calorosamente" por uma bela nativa. Constrangido pela ousada cena, Fonske declara: "Bem... como a esquerda do céu está a oeste, hoje...".

No final de Que o diabo seja surdo, Perrin (Pierre Richard) já aprontou várias com o detetive particular Campana (Gérard Depardieu). De repente, ele vê uma serpente aproximar-se da perna de Campana. Diz-lhe para não se mexer, aponta sua arma e atira. A bala atravessa a perna de Campana, que suspira e confessa: "Eu tinha uma vida um tanto sem graça antes de encontrá-lo, Perrin".

Em o filme Papai Noel é um picareta, Thérèse (Anémone) oferece a Pierre (Thierry Lhermite), como presente de natal, uma espécie de malha de fabricação artesanal. Pierre comenta: "Oh... puxa Thérèse, um pano de chão, que idéia genial!". No mesmo filme, Pierre critica Félix (Gérard Jugnot) por resolver seus problemas conjugais de maneira brutal. Ele, Pierre, não tem o hábito de se entender a golpes de ferro de passar. Félix responde: "Isso é porque você não é um homem doméstico". Esse exemplo mostra que um diálogo-pagamento pode ser tanto o pagamento de uma série de diálogos quanto o de uma situação.

No final de Memento, que relata de trás para a frente a aventura de um homem sofrendo de perda de memória imediata, o protagonista (Guy Pearce) diz: "Bem, onde eu estava?". É a última réplica do filme.

A cena de tradução de A vida é bela citada na página 318 contém vários maravilhosos exemplos de diálogo-pagamento.

Cabe notar que esse tipo de diálogo se assemelha aos dos desenhos humorísticos, em que o diálogo é quase sempre banal. É a defasagem que ele cria com o desenho que dá ao conjunto sua graça. Como, aliás, sempre olhamos o desenho antes de ler o diálogo, podemos considerar este último como um diálogo-pagamento. Sempé é um dos mestres nesse domínio.

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EXCERTO DO LÉXICO


Ironia dramática
(dramatic irony): procedimento que consiste em dar ao espectador informação que ao menos um dos personagens ignora (conscientemente), privilegiando, portanto, o espectador em relação a um (ou mais) personagem(ns). A ironia dramática é trabalhada em três etapas: instalação, exploração e resolução. A ironia dramática formula-se da seguinte maneira: "Nós sabemos que isso-ou-aquilo; tal personagem, porém, o ignora". 32, 79, 159, 196, 197, 199, 208, 289-346, 360, 371, 384, 393, 394, 411, 433, 445, 446, 453-455, 469-471, 500

Ironia dramática difusa: ironia dramática na qual o espectador pressente - em vez de saber - algo que os personagens ignoram. A ironia dramática difusa é consequência do recuo natural que todo espectador tem sobre os personagens da obra dramática. A ironia dramática difusa formula-se da seguinte maneira: "Nós pressentimos que isso-ou-aquilo; tal personagem nem desconfia". 328-332, 346, 347, 360-361, 365, 393, 394, 433, 454

Legenda: tradução aproximada dos diálogos, impressa sobre a imagem nas cópias em versões originais dos filmes estrangeiros. 427-428

Literatura: tudo o que é escrito para ser lido (em voz alta ou silenciosamente) e não visto ou ouvido. Cf. Dramaturgia e Exposição. 24, 31, 34, 118, 256, 343, 387-389, 400, 478-485, 496

MacGuffin: no stricto sensu hitchcockiano, o MacGuffin é o segredo que motiva os vilões (raramente os protagonistas) e desnecessário de comunicar ao espectador; lato sensu, toda justificação das premissas conflituosas externas da obra. Essa justificação é, na maioria das vezes, irrelevante, posto que as motivações do protagonista constituem o que interessa ao espectador, e não aquelas fundadoras de obstáculos externos. 86-88, 239, 244, 461

Marcador (main marker): nódulo dramático importante do segundo ato que, em geral, começa ou conclui a sequência. Cf. Clímax mediano. 382-385

Meio: procedimento usado pelo protagonista (local ou geral) para atingir seu objetivo. Quando difícil de atingir, torna-se subobjetivo; se mal escolhido, faz parte dos obstáculos internos. 65-67, 121, 175, 327, 384, 460

Melodrama: gênero dramático caracterizado pelo acúmulo de obstáculos externos e, em particular, as injustiças da vida e os azares infelizes. A passividade frente a este tipo de obstáculo reforça a sensação de melodrama. 34, 77-80, 99, 131, 290, 290-293, 376, 446, 495

Mid-act climax: cf. Clímax mediano.

Milking: anglicismo (ordenha em português) designando o procedimento que consiste em explorar ao máximo um elemento (cenário, personagem, situação, etc.), tirando dele toda significação possível para fazer avançar a ação. Sinônimo de exploração exponencial e forma de criatividade. Cf. Tricô. 23, 278-286, 301, 370, 453, 467-468, 509, 516

Mistério: procedimento que consiste em fazer o espectador saber que ele ignora uma ou várias informações, criando curiosidade intelectual. A resolução de um mistério é um esclarecimento. 240, 319, 337-346, 426, 455, 471, 508

Momento de escolha: nódulo dramático ao longo do qual um dos personagens, geralmente o protagonista, é levado a tomar uma decisão capital para ele ou para a ação. Coincide às vezes com o clímax ou o ponto de não-retorno. 168, 189-190

Mosaico (narrativa): narrativa que se interessa a diversos protagonistas (cada um tendo seu próprio objetivo) e misturando suas intrigas. 225

Motivação: o que anima o personagem e justifica suas ações. Pode ser emoção ou objetivo, consciente ou não (em função do efeito boneca russa pretendido). A motivação é noção importante, vinculada ao trabalho de caracterização, mas também catalizadora da participação do espectador. 63-65, 121



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