EXCERTOS

Sumário | Prefácio | Páginas do livro


Aos meus leitores de Portugal

Como poderão rapidamente constatar, o texto que têm entre as mãos foi traduzido para o português do Brasil, e não o de Portugal. Pessoalmente, eu teria adorado oferecê-lo nas duas línguas. Infelizmente, os custos se elevariam e terminariam por despejar-se no preço do livro. E ainda que meus amigos cineastas portugueses reivindiquem há bastante tempo uma tradução de La dramaturgie, foi uma roteirista brasileira, Juliana Reis, que primeiro se apresentou para a missão, longa e de fôlego. A ela meu muito obrigado. Apresento minhas desculpas por esta contrariedade, esperando que o esforço de adaptação exigido em sua leitura, seja compensado pela viagem que é oferecida pelo mundo da construção narrativa. Em compensação, fiz questão de que os títulos de obras fossem mencionadas em suas versões lusófonas.



PREFÁCIO



"Ensinar dramaturgia é aprender a perceber o homem, a entender o sentido da vida."
(Shohei Imamura [87])



"Marc escrevia com rapidez, respeitava prazos... Tudo era perfeito, com uma única condição: deixar a ambição de lado. (...) Alguns produziam frigideiras, tratores ou pranchas de windsurfe; a televisão produzia imagens, historias em imagens e ele tinha seu lugar neste processo, um lugar confortável que ele guardaria sempre, desde que ele não se considerasse um artista."
(Haute-Pierre)












Sobre alguns encontros determinantes

Esta obra é fruto de encontros bastante diferentes, e sem os quais ela nunca teria existido. Na origem de tudo, Frantisek Daniel, meu professor de escritura de roteiro entre 1983 e 1985 que, nessa época, era codiretor, junto com Milos Forman, da escola de cinema da Columbia University, em Nova York, onde obtive mestrado em roteiro e mise en scène. Frantisek era considerado, nos EUA e em alguns países europeus, um dos grandes especialistas do ensino de roteiro. De origem tcheca, ele havia lecionado na Escola de Cinema de Praga (FAMU), antes de emigrar para os Estados Unidos.

Em 1983, Frantisek Daniel aconselhou-nos enfaticamente a leitura da obra de Edward Mabley Dramatic construction [110], publicada no começo da década de 1970. Na época, o livro estava esgotado e era dificílimo encontrá-lo. Uma única cópia existia na biblioteca da universidade, o que me permitiu descobri-lo. É obra excepcional. Hoje, e graças a internet, é possível conhecer seu conteúdo, ainda que em inglês, já que ele nunca foi traduzido.

Entre outras coisas, Edward Mabley recomenda, por sua vez, vários títulos, entre os quais um ensaio brilhante e infelizmente inédito na França: Tragedy and comedy [98] de Walter Kerr, que também é autor de The silent clowns [97], dedicado aos cômicos do cinema mudo, outro livro extraordinário. Para completar a bibliografia que me ajudou a compreender o que seja dramaturgia, devo citar mais duas obras, legitimamente bem reputadas: as Entrevistas Hitchcock Truffaut [78] e Psicanálise dos contos de fadas [17].

Bruno Bettelheim, Frantisek Daniel, Alfred Hitchcock, Walter Kerr e Edward Mabley constituíram a base para minha reflexão sobre dramaturgia. Em seguida, duas atividades permitiram-me afinar e explorar mais profundamente essa reflexão. A de roteirista profissional em primeiro lugar e, em segundo, a de pedagogo, uma vez que criei e coordenei, entre 1987 e 1997, diversas oficinas de escritura dramática. Essa prática, por sua vez, levou-me a outras duas atividades: script doctor e conferencista em seminários sobre dramaturgia. Os dois primeiros dirigentes de instituição que me honraram com seus convites (Françoise Villaume, do Centro de Escrituras do Espetáculo de Villeneuve-les-Avignon, e Jacqueline Pierreux, da RTBF, em Bruxelas) e os alunos que frequentaram minhas oficinas contribuíram igualmente para o nascimento deste livro.

Enfim, devo muito a minha mulher, Catherine, e a meus filhos, Baptiste, Aurélien, Valentin e Clémentine, que tantas coisas me ensinaram sobre a vida e, consequentemente, sobre a dramaturgia. Afinal, e como Imamura [87], creio que compreender uma inclui compreender a outra. A todos, o meu obrigado.

A arte da narrativa

Nas edições francesas anteriores, o subtítulo do livro era "Os mecanismos narrativos". Acabei por me dar conta de que a narrativa é temida ou menosprezada por muitos artistas, quer sejam eles músicos, escritores, ilustradores ou cineastas, que alegam, entre outras maledicências, que a arte é o que sobra de uma disciplina artística da qual tiramos a historia. Ou ainda, que consideram a narrativa um pretexto, como um tipo de trampolim para exercer sua arte. Um trampolim trivial e utilitário, sem a menor dimensão artística.

Divagações como essas podem me fazer sorrir. Mas é importante restabelecer a evidência de que a narrativa é sim uma arte, e das mais potentes, ancestrais e necessárias ao desenvolvimento humano (cf. páginas 10-12). Contar histórias exige competências e criatividade e receber histórias permite ao ser Humano viver emoções, cultivar o belo, crescer e compartilhar experiências. Refutar a nossa necessidade da narrativa não deveria interessar a ninguém.

Primeiro longa-metragem como diretor

Entre a segunda (1997) e a terceira (2004) edição deste livro, algo relevante aconteceu no que se refere à minha trajetória: escrevi e realizei meu primeiro longa-metragem: Oui, mais.... A experiência não alterou em nada minhas considerações sobre o trabalho de roteirista, visto que não desci de um trono acadêmico para adentrar a arena artística. Era roteirista, dramaturgo, diretor de teatro e de curtas-metragens antes de escrever La dramaturgie e de dirigir Oui, mais....

Contudo, gostaria de destacar, sobre a apaixonante experiência de realizar um filme, como a passagem do texto à imagem e a encarnação dos personagens pelos atores pode levar-me a modificar o roteiro até o momento da mixagem do filme.


Regras e padronização

Quando La dramaturgie foi lançado na França, em 1994, a questão da existência de regras (cf. nota de rodapé) e do ensino do roteiro ainda era pertinente - isso justifica a inclusão, na introdução, de uma passagem sobre o aprendizado das regras. Atualmente, porém, idéias como essas não são praticamente mais questionáveis. Ainda assim, preferi manter o texto original, com a intenção de colocar os pontos nos iii. O leitor iniciado poderá saltar as páginas 15-20.

Isso dito, a recusa das regras da narrativa foi substituída por outra forma de resistência: hoje, nos queixamos da uniformização das obras. Subentende-se: as regras existem, admitimos, mas são nefastas por conduzir a uma lamentável estandardização. Somos forçados a reconhecer que certa uniformização se faz sentir, sobretudo proveniente de Hollywood, mas ela não se liga à importância crescente atribuída ao roteiro nos últimos 25 anos. Se existe uniformização, ela é devida à falta de audácia dos dirigentes, assim como à fraca criatividade de alguns autores. Certo é que, em se considerando a construção narrativa, podemos obter obras tão diversas quanto A esquiva, A festa (1998), Dançar: despertar de um desejo, Terra de ninguém, Onde é a casa do amigo?, As vidas dos outros ou A vida é bela. Seria justo dizer que esses filmes formam um monumento à uniformidade?

Nota de rodapé. Robert McKee [115] e outros teóricos preferem falar em princípios, posto que as regras seriam feitas para ser obedecidas, enquanto os princípios fariam referência ao que funciona. Aquelas imobilizariam, estes estimulariam. Não tenho medo da palavra "regra" e prefiro dar nomes aos bois; sobretudo se, como veremos na introdução (página 15), a palavra "regra" pode possuir vários sentidos.

As máscaras da resistência

Aqueles que aceitam a existência de regras e até concordam com o fato de que elas podem dar origem a grandes obras tendem às vezes a recorrer a uma fórmula clássica: "As regras são muito boas, mas devemos saber delas nos liberar para podermos encontrar nosso verdadeiro tom autoral". A ambição é bastante louvável, desde que o propósito seja libertar-se das regras que dominamos. Quando, porém, nos contentamos em conhecê-las em teoria e, chegada a hora da prática, esnobá-las, retornamos, mais uma vez, à prisão da resistência. Enquanto os protagonistas do teatro, do cinema e da história em quadrinhos persistirem só confiando em seus instintos para criar ou acompanhar obras dramáticas, continuarão jogando na loteria. E, como todos sabem, na loteria, perdemos ou ganhamos pouco com mais frequência do que ganhamos muito - atenção, falo aqui de ganhar em integridade e em coerência artísticas, e não em número de entradas no box office. Teremos a ocasião de retornar à espinhosa questão das regras e de sua consciência, em particular nas páginas 204-206.

Um espectador inocente

Muito me questionaram (e não sem uma ponta de preocupação) se é possível continuar a apreciar uma peça, um filme ou uma história em quadrinhos, a ser, enfim, um espectador inocente, após decifrar o segredo dos mecanismos da narrativa dramática. A resposta é sem dúvida que sim. Ao descobrir A vida é bela, ri, chorei e, só após ter desfrutado plenamente o filme, dei-me conta dos pagamentos formidáveis. Ao rever o fim de Luzes da cidade pela décima quinta vez, me emociono. Embora sabendo tratar-se da resolução de uma ironia dramática, eu choro. Mesma coisa quando releio o manga japonês Hareyuku sora. Não é o conhecimento das regras que corrompe a visão de uma obra dramática, mas a obrigação de comentá-la, pois ela é concebida para ser absorvida pelo coração e pelas vísceras, e não apenas pelo cérebro. Nem o autor, nem o leitor deste livro, contudo são tocados por esse problema. Por outro lado, é bem provável que o conhecimento dos mecanismos narrativos torne o espectador mais exigente, mais difícil de satisfazer. Digamos que, quando a obra "funciona", a recebemos como qualquer pessoa; quando ela não "funciona", temos a capacidade de analisar por que, percebendo mais facilmente suas falhas.

Sr. Hulot escreve seriado para TV

Nas duas primeiras edições de La dramaturgie (1994 e 1997), havia um anexo dedicado à redação para a televisão. Nele dava alguns poucos conselhos técnicos, já que os mecanismos narrativos são fundamentalmente os mesmos que para teatro ou cinema. Por outro lado, eu enaltecia intensamente o seriado. E convidava os autores a se considerar artistas e, sobretudo, os executivos dos canais a permitirem aos autores se considerar artistas, como se estivesse inventando a posição de sentar.

Acontece que, neste mesmo momento, em 1996 para ser exato, chegavam às telinhas francesas duas bombas, Friends e Serviço de urgência, seguidos por pouco de uma terceira: Ally McBeal. Era o começo de um grande tapa na cara tomado pelo conjunto de atores da ficção televisiva francesa, e mesmo mundial. Desde então, esses bombardeios ocorrem, em média, seis vezes por ano: CSI: Crime sob investigação, Dexter, Donas de casa desesperadas, Dr. House, A escuta, Juventude à flor da pele, Sete palmos de terra, Os Simpsons, Os Sopranos, 24, The worst week of my life e muitos outros. Tivemos que nos render: a teledramaturgia francesa era brega, conservadora, ultrapassada. Um sentimento de vergonha começou a tomar a paisagem audiovisual francesa, a PAF.

E ainda assim, se séries americanas tivessem se contentado em nos mostrar a que ponto estávamos artisticamente estagnados, provavelmente continuaríamos sendo até hoje, já que "para o artístico, não estamos nem aí!". É uma mera preocupação filosófica. Mas quando é no bolso que a situação se faz sentir, as consciências acordam, como num golpe de mágica. Ora, tendo acesso ao horário nobre da programação, elas venceram sem esforço a disputa pela audiência.

O conjunto da PAF entendeu que se devia reagir. Em Há festa na aldeia, o carteiro, um tipo de Sr. Hulot rural representado por Jacques Tati, descobre impressionado os métodos de distribuição postal utilizados nos Estados-Unidos. Ele decide então fazer suas entregas a moda "amerrrricana". Uma série de pequenas catástrofes se sucedem. E como o carteiro de Há festa na aldeia, a TV francesa resolveu imitar sua concorrente anglo-saxônica, aceitando, finalmente, o que nós, roteiristas franceses, martelávamos há vinte anos. Primeiro, é necessário disponibilizar muito mais meios para o posto mais importante de uma narrativa televisiva: o roteiro. Segundo, é necessário acabar com o esnobismo dos unitários e dos 90 minutos, o seriado sendo o formato ideal para a televisão. Um grande homem do cinema, Alfred Hitchcock, foi um dos primeiros a tê-lo compreendido quando começou a produzir seriados de televisão nos anos 50. Depois dele, cineastas como David Lynch e Steven Spielberg seguiram o mesmo princípio.

As imitações começaram então a se proliferar. Copiamos, pura e simplesmente, adaptando seriados existentes e fazendo remakes declarados. Também nos inspiramos sem vergonha, tentando fazer um Anatomia de Grey à francesa, um Ally McBeal à francesa, um Dexter à francesa. Resultado (totalmente previsível): um sub-Anatomia de Grey, um sub-Ally McBeal e um sub-Dexter. Montamos ateliês de autores para escrever em grupos. O Centro Nacional de Cinematografia lançou fundos de inovação supostamente destinados a financiar a redação de projetos selecionados pela sua originalidade mais do que pela capacidade de seus autores de os desenvolver. Decidimos fazer seriados com personagens de trinta anos para seduzir os menos de 35 anos que não assistem TV. Como se fosse necessário estar desempregado para apreciar Ou tudo ou nada ou estar morto para vibrar com Dead like me! Finalmente, tomamos a iniciativa de ser audaciosos e delirantes. Enquanto a verdadeira ruptura, a audácia do século, seria simplesmente contar uma historia com brio - e pouco importa o assunto -, nos foi proposto uma mulher presidente da república na França, um anão e um transexual num episódio de sitcom, um seriado policial com palavrões e cadáveres sanguinolentos em plano fechado, e um monte de cenas bem quentes para apimentar o todo.

Entramos na primeira fase de colheita e é provavelmente cedo demais para fazer um balanço da situação. Mas me parece que os executivos da PAF não levaram a cabo um terço das reformas. Alguns começaram a mais ou menos colocar o roteiro no centro do dispositivo, deixando porém o roteirista a sua margem.

Marc Cherry, David Chase, Alan Ball, Matt Groening, Mark Bussell e Justin Sbresni, Marta Kauffman e David Crane não são somente os roteiristas do seriado que criaram, eles também são os produtores. Eles participam dos castings, tem acesso à sala de montagem, as vezes até dirigem um episódio ou dois. Em duas palavras, eles são os tomadores de decisão do seriado. E, até, os principais tomadores de decisão. Não é uma questão de ego mas de lógica. David Chase, autor de Os Sopranos, é um exemplo perfeito deste sistema. Chase escreveu e dirigiu o piloto e diversos episódios, cuidou do casting dos atores mas também do casting dos roteiristas. Supervisionou a montagem de todo o seriado. Em suma, deixaram David Chase se considerar artista. No final, o resultado foi um produto industrial e uma obra de arte, tão entretenimento quanto obra de autor, uma das mais potentes do repertório dramático contemporâneo. Alguns dirão que Os Sopranos foi veiculado em canal pago (HBO), menos submissos aos testes de audiência do que os grandes canais abertos. Tomamos então o exemplo de Serviço de urgência, transmitido num network broadcasting TV (NBC). O raciocínio é o mesmo, é só substituir o nome de David Chase pelo de Michael Crichton. Ou ainda, tomando o exemplo de Donas de casa desesperadas, transmitido na ABC, e substituindo o nome de David Chase pelo de March Cherry. Ou o dos Simpsons criado por Matt Groening e transmitido pela Fox.

Em suma, não somente as boas séries americanas dão poder ao roteirista como também valorizam os autores talentosos, principal segredo do seu sucesso. Se mantivermos Sr. Hulot distribuindo o correio à moda "amerrrricana", será sempre o estilo Hulot, e não o US Postal.

Yves Lavandier (março de 2011)